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COLUNAS 17/10/2020

TRIUNVIRATO: O tempo e as tecnologias

Profa. Dra. Maria José Carvalho de Souza Domingues
Programa de Pós-Graduação em Administração e Ciências Contábeis - PPGAD e PPGCC  
Pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisas em Gestão de Organizações Complexas e Ensino Superior

 

A trilogia “O tempo e o vento” de Érico Veríssimo, para mim é uma das melhores obras escritas. Nela acompanhamos os acontecimentos de uma família ao longo de dois séculos. A transformação da vida ao longo dos anos e questões como os desafios, as formas de enfrentá-los, as emoções, as pessoas, as amizades, inimizades, enfim, ficção e fantasia vão se desenrolando. 

 

Ultimamente tenho pensando sobre o tempo e seu significado. Talvez seja obra do próprio. Não que ele me sobre. Pelo contrário, está me escapando e busco constantemente retê-lo, aproveitá-lo e usá-lo intensamente.

 

No último livro que publiquei (Horácio de Carvalho: o amigo de Cruz e Sousa), resgatei os principais eventos de sua vida, assim como textos por ele publicados, os quais o tempo tratou de esconder.

 

Este mesmo tempo que fez esquecer o Horácio e seus textos, possibilitou agora reencontrá-los com o auxílio da tecnologia. Não seria possível escrever este livro há cinco anos. Somente com a digitalização dos jornais antigos do século XIX, por meio do belíssimo trabalho da Hemeroteca nacional e em especial da Hemeroteca catarinense, foi possível encontrar e desvelar um pouco do escritor Horácio de Carvalho. Não cabe aqui trazer os textos que encontrei (para isso existe o livro), mas sim o processo de pesquisa e elaboração. Este foi sem dúvida, para mim um dos exemplos de como o tempo e a tecnologia podem ser percebidos como algo em constante transformação, como tão bem aborda Pierre Levy em sua obra Tecnologias da Inteligência.

 

Como a reflexão sobre o tempo numa forma mais ampla, gosto muito da utilização da figura mítica de Janus. Mas afinal, quem é Janus?

 

Janus, ou Janos, é o Deus Romano dos começos, dos fins, das passagens, das portas, das entradas, das saídas, da transição, da guerra, da paz, do passado, do futuro, da dualidade, da mudança, do tempo, da criação, do intercâmbio, das viagens, dos barcos, do lar, da profecia, da vida e da morte, da libertação e da dominação.

 

Para Leodoro (2005) “Janus (ou Jano) é a divindade bifronte que mantém uma de suas faces sempre voltada para frente, o porvir, e a outra, para trás, em apreciação ao que já passou.” É considerado o deus da transformação e o mediador das preces humanas aos demais deuses. Também é considerado o deus dos princípios, sendo-lhe consagrado o primeiro mês do ano, janeiro, januarius

 

Ao tomarmos a imagem do Jano bifronte para entender o impacto das tecnologias digitais na vida cotidiana, percebemos que as mesmas podem ser encaradas numa perspectiva ambivalente. Ou seja, pode ser entendida como algo que pode tanto assumir o papel de aproximação e afastamento, de conexão e desconexão, de abertura e fechamento, de inclusão e exclusão. Tudo depende de como vemos, a utilizamos e nos posicionamos. 

 

É cada vez mais comum vermos as faces de Jano. Por exemplo, quando utilizamos a tecnologia para nos reaproximarmos de colegas dos tempos de colégio por meio das redes sociais, ou ao  assistirmos o isolamento das pessoas nos restaurantes, cafés, conectados via smartphones mas desconectados daqueles que os acompanham. A concepção de tempo e distância é profundamente modificada com a tecnologia. A magia da tecnologia pode num primeiro momento nos encantar e ao mesmo tempo trazer sérias consequências. A tal magia se manifesta quando mesmo afastados fisicamente por milhares de quilômetros, conseguimos conversar, com aúdio e imagem via skype. As redes sociais também exercem tal fascínio ao permitir reencontrar via redes sociais, antigos colegas de infância, relembrando uma época que estava somente nas nossas memórias. Isso sem falar nos efeitos de holografia em que podemos projetar imagens em diferentes locais. As fotos também não ficam atrás. Obscurecidas pelo tempo, podem ser editadas e pintadas digitalmente. Podemos acrescentar pessoas, reuni-las ou separá-las. É possível voltar ou criar um novo porvir ou mesmo um novo devenir.

 

Enfim, assim como Juno, tudo depende do que e quem se quer ver. É possível inclusive navegar pelos jornais antigos, amarelados pelo tempo e acessíveis ao toque dos dedos graças a digitalização dos acervos. Nada como um clique para localizar e trazer rapidamente ao nosso tempo, textos e vivências antes perdidas nas estantes de bibliotecas vazias.

 

O tempo pára o vento. Nada é mais estanque. Tudo pode mudar, inclusive o passado. Resignificado, reeditado, reconstruído e, portanto, recriado.  

 

A cena final de um dos livros do Tempo e o Vento nunca foi tão real: quando os personagens mortos ressurgem e se misturam ao contemporâneo. Fantasticamente acontece com a tecnologia. Janus é poderoso e real.

 

Ainda bem que apesar de tanta tecnologia e até por ela, ainda não se perdeu o gosto pela leitura. Como eu, minha filha teve a oportunidade de ler a trilogia do Tempo e o Vento, e pudemos compartilhar com alegria a leitura. Nada como o tempo. Ainda bem que conseguimos momentos para conversar sobre os personagens e situações. Aliás, algo bem reduzido nesta época de muita tecnologia. Encontrar um tempo para conversar e aproveitar a companhia um do outro. 

 

REFERÊNCIAS

 

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34 , 2010.

 

LEODORO, Marcos Pires. Pensamento, cultura científica e educação. 2005. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

 

Imagem: reprodução (internet)

 

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